Os Sobrenomes mais comuns do Brasil - Volume II - M a Z
Maia, sobrenome
de origem latina. Nome de raízes toponímicas, tirado que foi da terra da Maia,
o antigo domínio da linhagem desta designação, é possível que os descendentes
de alguns dos ramos daquela o tenham vindo a tomar como apelido. Eram os «da Maia» uma linhagem das
mais preclaras e remotas origens, ainda altimedievais, tendo vindo a recair a
sua primogenitura, bem como os seus principais bens patrimoniais na linhagem dos «de
Riba-de-Vizela», pelo casamento do chefe destes com a filha herdeira do
daqueles. E como foram os Melos que vieram a representar a primogenitura dos
«de Riba-de-Vizela», foram também eles que passaram a representar a linhagem
dos «da Maia». Deste modo a chefia de ambas, bem como a dos Melos, caíu na Casa
dos Condes desta designação e, hoje, na dos Condes de Mangualde.
Ainda durante a Idade Média, no
entanto, a descendência secundogénita dos «da Maia», conservando nalguns casos
a categoria nobiliárquica de Ricos-homens e certas parcelas dos antigos bens
senhoriais da linhagem, deu origem a família que transformaram a designação
daquela em apelido. Assim, no Livro do Armeiro-Mor atribuem-se a
uma família da Maia umas armas que deverão provir do «sinal» pré-heráldico da
antiga linhagem.
A história da linhagem, segundo
Francisco António Dória ("Lendas,
Mitos'' em "Convergência: Ensaios em Homenagem a Emmanuel Carneiro Leão no
seu 70o. Aniversário", Sette Letras, 1999) começa com a lenda do Rei
Ramiro ou lenda da Miragaia, ou lenda da família da Maia, que conta a história
das origens de uma família de infanções cujas terras se situavam nos arredores
do Porto. Foram os padroeiros do mosteiro de Santo Tirso de Ribadave, fundado
em 978 pelo primeiro antepassado documentado dessa família, um moçárabe (isto é, árabe cristianizado), Abunazar
Lovesendes.
Na lenda, o infanção Abunazar torna-se
infante Dom Alboazar Ramires, filho, que não o foi, de Ramiro II, rei de Leão:
"O dito Dom Ramiro roubou Dom
Ortiga, irmã de Alboazar Abuzadão Sr. de Gaya Santarem, e bisneta de [rei]
Aboali a qual pela sua rara formosura obrigou ao do Rey D. Ramiro a pedilla pa.
cazar com ella, q lhe foi negada, dizendo-lhe Alboazar q a ley dos Christaons
não premetia ter mais q hua mulher de q resultou o do. roubo, e sentido
Alboazar do dito roubo sabendo onde D. Ramiro tinha deixado sua molher em q.to
se devertia com D. Ortiga a foi tãobem Roubar, e levou para Gaya, e o q sabendo
o Rey D. Ramiro, cobrio as suas fragatas de pano verde, e se veyo meter sem ser
percebido em S. João
da Foz q entam tinha muytos arvoredos, e pella sua industria se meteo no
Palacio [de Alboazar] e fallou com sua mulher pa. ver como a havia de tirar do
poder de Alboazar deixando ordem aa sua escolta pa. q ouvindo tocar uma corneta
q levou lhe acudissem, e como sua m.er allem de queixosa estava namorada de
Alboazar o fichou em Caza pa. o entregar aa morte, de q escapou dizendo [Rei
Ramiro] a Alboazar q hia ali pagar seu pecado, e roubo de sua irmãa, mas q o
seu comfessor lhe dissera q pa. ser perdoado o do. seu crime havia de morrer
afrontozam.te diante do povo a tocar em aquella corneta the arrebentar, no q
conveyo Alboazar, para o q lhe mandou fazer hum poste no meyo da Praça alto, e
delle se poz a tocar a cujo toque acodindo a sua gente matarão todos os Mouros
e trocerão a Raynha, q mandou D. Ramiro atar a hua moo, e lançar no Rio, e
dipois recebeu D. Ortuga, de q teve o infante D. Alboazar Ramires”. A lenda é fascinante, porque Ramiro II (c.
900-951) dominou os territórios que constituem hoje Portugal, entre 920 e 930,
e foi depois rei de Leão e é personagem documentadíssima. E o rei Aboali é, com
certeza, Abdallah, emir de Córdova (844-912) que ascendeu ao emirado em 888.
Isso tudo, no prólogo à genealogia dos Coelhos, no autor setecentista
Felgueiras Gayo. Em resumo, a lenda conta que Ramiro II trai a mulher, Aldara,
com uma moura, Zara ou Ortega, de família nobre (é descendente dos Omíadas de
Córdova, parentes do próprio Profeta do Islão). Aldara vinga-se traindo Ramiro
com o mouro, e é morta por isso. Ramiro II sai sem punições ou penas, e casa
com a moura Ortega, de quem deixa um filho, Dom Alboazar Ramires. Ramiro II
teve por primeira mulher a Ausenda Guterres, filha do conde Guterre Osores, e
neta materna de Hermenegildo Guterres, o grande presor de Coimbra. Tiveram
quatro filhos: Bermudo, que morre adolescente; Ordonho, depois rei Ordonho III
de Leão, e mais dois que desaparecem da história. O casamento dura uns dez
anos, pois Ausenda Guterres é repudiada por volta de 930, e naõ mais se sabe
dela. Ramiro volta a casar ainda duas vezes, com uma infanta de Navarra e com
uma certa Urraca, ou Teresa. Por que foi repudiada Ausenda Guterres? Não por
infertilidade. A lenda do Rei Ramiro sugere que Ausenda Guterres, grande
senhora, filha e neta de magnatas, tinha traído o rei. Se narrativas lendárias
são como sonhos, nelas então ocorrem inversões e mecanismos compensatórios.
Ramiro II trai Aldara, sua mulher na lenda. Ela dá o troco, e é punida. E se
esta sentença refletir, com sinal contrário, o que de fato aconteceu? Ramiro II traído pela mulher, Ausenda?
Na busca pelo que existe de histórico
e de fantástico (se é que podemos separar uma coisa da outra) nessa narrativa
fascinante encontramos de súbito um tesouro: os arquivos do mosteiro de Lorvão,
publicados há um século e meio por Alexandre Herculano nos seus
"Portugaliae Monumenta Historica, Diplomata et Chartae". As cartas de
Lorvão formam a parte mais antiga do acervo. E neles comparecem quase todos os
personagens da lenda do Rei Ramiro. Zahadon e sua mulher, Aragunte, junto a
Cresconio e a mulher, Smelilo e ainda Bermudo, herdeiros de um certo Fromarico
(decerto pai dos que têm nome visigodo, Aragunte, Cresconio e Bermudo) vendem a
Gondemiro (que, aprendemos depois, se chamava Gondemiro iben Dauti) e a sua
mulher Susana, partes da Vila de Albalat na região de Coimbra. Testemunhas do
ato? Ramiro II; seu filho Bermudo; a condessa Ilduara (lembram-se de
"Aldara", a mulher de Ramiro na lenda?), os condes Ximeno Dias e
Froila Guterres. Escritura de venda de gente poderosa, com o testemunho das
gentes mais poderosas da terra, o rei, o príncipe, e membros da família de
Hermenegildo Guterres, senhores da região de Coimbra. Coincidência? Um
documento (DC 47) de 938 trata da doação de um moinho, na vila de Ançã, feita
pela condessa Ilduara a Gondemiro iben Dauti e a sua mulher Susana. A relação
das testemunhas repete, na mesma ordem, o fragmento da genealogia que nos é
trazida na lenda: Alboazar filho de D. Zadão Zada, filho de Zada... [Abd al?]
Nazar, test.; Zahadon, test.; Zahad, test. Zahadon aparece como presbiter, mas
isso não lhe indica um status de eclesiástico. (Ainda que Zahad signifique
"ermitão", e Zahadon, "referente ao ermitão") Presbiter era
apenas alguém ligado a uma comunidade monástica, e essa família com certeza
tinha padroado sobre Lorvão, pelas doações que faz ao mosteiro (DC 68, de 954).
Rodrigo, também conhecido como Abu
al-Mundhir, e sua mulher Coraxia, legam ao mosteiro de Lorvão várias vilas,
entre as quais Tentúgal, além de outros bens. E vejam-se os nomes dos
confirmantes: Walid, Abdallah (Hadella), Abd al-Malik, Ubayd'Allah
(Abobadella), Zahadon... Al-Mundhir é o nome do emir de Córdova que morreu na
guerra contra Ibn Hafsun em 888; irmão de Abdallah, este, já dissemos, nascido
em 844 e falecido em 912, de quem a
genealogia, muito com certeza verdadeira, que está embutida na lenda,
diz, descende essa gente de moçárabes com nome de emires, califas, e mais
pessoas da família do Profeta. Por que verdadeira a genealogia? Porque
encontramos nos documentos, nos períodos correctos, consistentemente, os
personagens da linhagem de Zara. Por que não seria verdadeira essa linhagem
omíada desta família dos Zahads e Zahadons, família obviamente de alta
hierarquia? Mas veja-se ainda o que dizemos em seguida:
A lenda do rei Ramiro procura
esclarecer-nos sobre as origens da família da Maia, cujo primeiro antepassado
documentado é certo Abunazar Lovesendes, fundador do mosteiro de Santo Tirso de
Ribadave em 978. A
lenda faz do rei Ramiro II pai deste Abunazar, o que é impossível pela
cronologia, já que Ramiro morreu em 951, e pelo patronímico, pois o pai de
Abunazar chamava-se Lovesendo, e não Ramiro. Segundo a lenda, a família da Maia
descenderia do adultério de Ramiro com uma princesa moura: Abunazar ganha na
lenda uma ascendência real, da mais alta nobreza, por seu pai e por sua mãe. Mas,
notemos o seguinte: quando esta lenda se fixa por escrito nos livros de
linhagens, o árabe é o inimigo subjugado. A conquista do Algarve fora feita nos
fins do século XIII por Afonso III. A lenda conta uma ascendência ilustre dos
senhores da Maia na família real do inimigo, inimigo político e religioso. Numa
família real que se aparentava ao próprio fundador da religião adversária.
Ramiro II parece que entra na lenda
como um contrapeso ideológico. Mas notemos que há vínculos indirectos, indícios
que mostram vínculos, entre a família da Maia, em fins do século X, e a família
do conde de Coimbra, Hermenegildo Guterres. Uma das filhas de Abunazar
Lovesendes tem o nome Ausenda como a mulher repudiada de Ramiro II. Um dos
filhos de Abunazar, de quem aliás descenderá outro personagem lendário
português, Egas Moniz o Aio, é Ermígio. Forma rara do nome Hermenegildo (mais
comum é o vernáculo Mendo, ou Mem), aliás, frequente e só encontrada nessa
família dos da Maia. Há mais evidências: no século XI, Soeiro Mendes da Maia,
dito o bom, litiga nos tribunais contra os herdeiros de certo Froila Cresconiz,
que, sempre pela raridade do nome, parece ser filho do Cresconio cunhado de
Zahadon e irmão de Aragunte, mulher de Zahadon.
O que aconteceu, na história, no
concreto, nunca se saberá ao certo. Mas o seguinte cenário (cenário, deixo
claro) parece explicar a narrativa lendária. Ausenda, rainha de Leão e mulher
de Ramiro II, comete adultério. É, por isso, repudiada. (Não deve ter sido
morta; sua família era poderosa demais.) Do filho adulterino, Lovesendo
(compare-se a desinência -sind, Ausenda, Lovesendo), que se casa com a filha de
Zahadon, nasce Abunazar Lovesendes, primeiro senhor das terras da Maia. Para
que a lenda? Para mascarar as origens adulterinas e heréticas de uma família
que será tão poderosa. Cujos descendentes, muitissimamente numerosos hoje em
dia, todos compartilham, ainda que muito, muito longe, do sangue dos Omíadas e
de seu parentesco ao Profeta do Islão".
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